segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Estou Proibido

Hoje acordei proibido de sonhar qualquer tipo de proibição. Acordei proibido. Sonhei um sonho proibido, deste malandramente vedado.
Não posso mais falar o que penso e se penso sou interditado. Não sou branco, não sou negro, não sou pardo, não sou amarelo e tudo sou. Nem vou chamar meu velho pai de negão e nem meu irmão branco de brancão. Não vou nos melhores momentos chamar minha amada de qualquer tipo de animal que não seja a fêmea, mulher e amante.  Estou vetado. Vetado para práticas ilícitas e para confusões.

Acordei proibido de pensar que posso ser diferente e ausente de tudo. Proibido de concordar com meus semelhantes e, sem dúvida, censurado para a realização de práticas discursivas com meus não-semelhantes.
Acordei vetado do ato de discordar.

Já não posso mais fumar minhas cigarrilhas cubanas e nem beber minha cachaça mineira. Não posso mais nem querer o lícito. Para aqueles livros proibidos outros censurados pela Justiça são juntados. Os bombeiros do Fahrenheit 451 vieram queimar todo tipo de material impresso e lá se foram meus livros, meus jornais velhos, meus papéis sujos, meus poemas riscados, meus sonhos safados. Nada de fogueiras das vaidades, nada de queima de liquidação, nada de leitura insurgente, de poemas sujos ou histórias de fracos, oprimidos e vencidos. Nada de datas comemorativas ilusórias de versos anárquicos ou malvados.
Na luta pelo direito de meus livros eu não poderia ser uma Joana D’Arc moderna e por outro lado pensei que os livros já não são mais necessário, basta a internet pensei...
Ao ligar meu computador de cara fui avisado que meus twitter tinham sido apagados, minhas redes sociais canceladas e todo comentário deletado. Tentei ler um e-book e para minha já não mais surpresa só livros que não me interessavam repousavam pelas prateleiras virtuais. Os livros que ontem eu deveria ler já estavam fora da rede.

Programa de televisão já não assisto, então que fazer? Minha rede moderna de relações desmanchou no ar... Tudo que é sólido – não é Carlos Marques??
No fundo do baú achei uma raridade: um livro de memórias. Exclamei: estou salvo, livre! Ao manuseá-lo a decepção: páginas extraídas, desaparecidas como lapsos de memória.
Pensei em chorar minhas lágrimas secas e poluídas mas pedras ficaram.


Tentei lutar quixotescamente.(Feliz idade e feliz século aquele onde sairão à luz as minhas famosas façanhas, dignas de entalhar-se em bronzes, esculpidas em mármores e pintadas em telas para a memória do futuro - D.Quixote: II Capítulo).

Nada me resta a não ser dormir novamente e quem sabe cabraliamente teceremos manhãs?

“Tecendo a Manhã    
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.  

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,  

para que a manhã, desde uma teia tênue,  
se vá tecendo, entre todos os galos...
João Cabral de Melo Neto”



cena de Fahrenheit 451

2 comentários:

  1. Engraçada a sensação ao ler seu texto, me traz algo familiar, uma sensação parecida as vezes...
    Parabéns, adorei a coluna.
    Lili.

    ResponderEliminar
  2. Bradbury revisitado e sempre atual. Gostei do texto. Abraços.

    ResponderEliminar